“Já não há mãos dadas no mundo
Elas agora viajarão sozinhas
Sem o fogo dos velhos contatos,
Que ardia por dentro e dava coragem.
Desfeito o abraço que me permitia
Homem da roça, percorrer a estepe,
Sentir o negro, dormir ao teu lado,
Irmão chinês, mexicano ou báltico.
Já não olharei sobre o oceano
Para decifrar no céu noturno
Uma estrela vermelha, pura trágica,
E seus raios de glória e de esperança.
Já não distinguirei na voz do vento
(Travalhadores uni-vos…) a mensagem
Que ensinava a esperar, a combater,
A calar, desprezar e ter amor.
Há mais de vinte anos caminhávamos
Sem nos vermos, de longe, disfarçados.
Mas a um grito, no escuro, respondia
Outro grito, outro homem, outra certeza.
Muitas vezes julgamos ver a aurora
E sua rosa de fogo à nossa frente.
Era apenas, na noite, uma fogueira.
Voltava a noite, mais noite, mais completa.
E que dificuldade de falar!
Nem palavras nem códigos: apenas
Montanhas e montanhas e montanhas,
Oceanos e oceanos e oceanos.
Mas um livro, por baixo do colchão,
Era súbito um beijo, uma cadeia,
Uma paz sobre o corpo se alastrando,
E teu retrato, amigo, consolava.
Pois às vezes nem isso. Nada tínhamos
A não ser estas chagas pelas pernas,
Este frio, esta ilha, este presídio,
Este insulto, este cuspo, esta confiança.
No mar estava escrita uma cidade,
No campo ela crescia, na lagoa,
No pátio negro, em tudo onde pisasse
Alguém, se desenhava tua imagem.
Teu brilho, tuas pontas, teu império
E teu sangue e teu bafo e tua palpébra,
Estrela: cada um te possuía.
Era inútil queimar-te, cintilavas.
Hoje quedamos sós. Em toda parte.
Somos muitos e sós. Eu como os outros.
Já não sei vossos nomes nem vos olho na boca,
Onde a palavra se calou.
Voltamos a viver na solidão,
Temos de agir na linha do gasômetro,
Do bar, da nossa rua: prisioneiros.
De uma cidade estreita e sem ventanas.
Mas viveremos. A dor foi esquecida
Nos combates de rua, entre destroços.
Toda melancolia dissipou-se
Em sol, em sangue, em vozes de protesto.
Já não cultivamos amargura.
Nem sabemos sofrer, já dominamos
Essa matéria escura, já nos vemos
Em plena força de homens libertados.
Pouco importa que os dedos se desliguem
E não se escrevam cartas nem se façam
Sinais de praia ao rubro couraçado.
Ele chegará, ele viaja o mundo.
E ganhará enfim todos os portos,
Avião sem bombas entre Natal e China,
Petróleo, flores, crianças estudando,
Beijo de moça, trigo e sol nascendo.
Ele caminhará nas avenidas,
Entrará nas casas, abolirá os mortos.
Ele viaja sempre, esse navio.
Essa rosa, esse canto, essa palavra”
– Carlos Drummond De Andrade, 1945, Editora José Olimpio.
Ouça este poema no canal de #podcast Pitada De Poesia, já está disponível nas plataformas de áudio #spotify, #anchor, #googlepodcast e Apple Podcasts o novo episódio inédito do canal, com este poema de Drummond, que faz parte da obra literária A Rosa do povo, considerada uma das obras mais expressivas do referido autor. Vale a pena a leitura deste livro, estou encantada. Siga o canal nas plataformas e compartilhe este conteúdo com seus amigos e familiares. O link do Anchor está como site no anexo no menu aqui do Blog.
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Adoro seu blog, minha amiga querida! 🥰🥰🥰
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Grata amiga. Você sempre me inspira. ♡
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Boa noite minha filha. Muito bom esse poema ” Mas viveremos “, realmente a obra mais expressiva do autor Carlos Drummond de Andrade que reflete um tempo sombrio durante a Segunda Guerra Mundial, e em tempos de pandemia esse tempo sombrio se assemelha com uma guerra que segundo a ONU as previsões para 2021 não são muito boas e poderá ter uma crise maior do que em 2020 semelhante a uma guerra mundial, tomara que essa previsão da ONU não se concretize e com os poderes de Deus o mundo vai atravessar esse tempo sombrio da pandemia e superar toda essa crise de saúde e economia no novo normal pós pandemia, mas viveremos.
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Verdade painho. Os poemas deste livro são muito bonitos e profundos. Tem alguns poemas políticos tbm como Carta a Stalingrado. Um beijo painho.
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